PERFORMATIVIDADE, TEATRALIDADE E IMPRO
Luana Maftoum Proença
A Impro[1] é uma linguagem teatral que se baseia no momento da apresentação, do contato com o público, para criar a apresentação em si. Desta maneira destaca o encontro entre artistas (incluindo aqui técnicas/os, improvisadoras/es e etc.) e plateia como pulsão de criação: tudo que será feito ali será uma resposta ao que se respira e inspira no espaço e tempo em que este grupo se reúne. É uma feitura enquanto já se é, e este “enquanto” é o motor da improvisação.
Tomando o senso comum, quando o que se pensa e o uso das palavras improviso e improvisação:
A idéia corrente que geralmente se faz a respeito da improvisação é de algo informal, espontâneo, imprevisto, sem preparo prévio, inventado de repente, arranjado às pressas, súbito, desorganizado, aleatório, enfim, trata-se de um produto inspirado na própria ocasião e feito sem preparo e sem remate. (CHACRA, 2005, p. 11).
Esta indicação de senso comum que a pesquisadora Sandra Chacra traz em seu livro “Natureza e sentido da improvisação teatral” é o ponto do qual ela parte para questionar também este mesmo pensamento, desenvolvendo argumentações históricas e técnicas para dar suporte ao improviso como elemento natural, cotidiano e possível de treino e articulação como arte e espetáculo.
A ideia de se criar “do nada”, a partir de uma bolha vazia de ideias, intenções, referências contradiz o nosso entendimento de que não existimos como seres isolados, mas sim como somos sujeitos em comunidade (Vicent Colapietro), seres históricos, culturalmente inseridos nas relações. Improvisar “do nada”, “sem preparo prévio” ou realmente se ter algo “inventado de repente” ignoraria a própria ideia de presença, de ser e estar em um ambiente e se perceber nele. Criamos a partir das nossas memórias, referências, experiências, competências, capacidades e habilidades, nossa história. História essa que se faz presente no momento presente e se modifica com a interação no encontro.
Este fator do encontro e da criação enquanto se está na presença da/o outra/o é o fenômeno essencial da Impro, e um dos fatores elementares atribuídos a conceitualizações à palavra performatividade. Em “Towards a definition of performance improvisation”, tese de Doutoramento em Filosofia pela Escola de Estudos de Teatro da Universidade de Warwick, Naoko Yagi argumenta em sua introdução quanto a vulnerabilidade dos termos “performance” e “improvisação” também pelo âmbito do senso comum, partindo do trabalho do linguista George Lakoff para diferenciar a carga de clareza de significado que se tem com precisão para objetos físicos como, por exemplo, para com uma mesa, mas não se tem para com movimentos, emoções, etc. “[…] ‘performance’ e ‘improvisação’ pertencem a um reino fora do que Lakoff chama de ‘objetos físicos’ ou ‘entidades’ e ‘propriedades’ específicas e claras.” (YAGI, 1999, p.7). Desta forma uma mesa é uma nomenclatura que especifica uma imagem concreta e que inclusive se traduz com grande precisão para diferentes línguas. Já palavras como “performance” e “improvisação” sofrem no entendimento e compreensão do que se pode ser, pois dependem de um ponto de vista, área, contextos ou conotação em que são empregadas. Quanto a isso, Janelle Reinelt menciona os estudos de Diana Taylor e Juan Villegas onde se evidencia, por exemplo, que nos países de língua espanhola da América Latina não há correspondência diferenciada das palavras performance ou performatividade para com teatro e teatralidade (REINELT, 2002). Do entendimento de um senso do uso da palavra performance em campos diferenciados para sua aplicação no desenvolvimento dos estudos performativos, Richard Schechner indica:
Nos negócios, nos esportes, e no sexo, “realizar performance”[2] é fazer algo dentro de um padrão – ter sucesso, ter excelência. Nas artes, “realizar performance” é se apresentar, numa peça, numa dança, num concerto. Na vida cotidiana, “realizar performance” é exibir-se, chegar a extremos, destacar uma ação para aqueles que assistem. […]
“Realizar performance” também pode ser entendida em relação a: […]
“Ser” é a existência por si só. “Fazer” é o agir de tudo que existe, dos quarks até seres conscientes e cordas supergalátivas. “Mostrar fazendo” é desempenhar: apontar, destacar, e exibir enquanto se faz. “Explicar o ‘mostrar fazendo’” são os estudos performáticos. (SCHECHNER, 2006, p.28 – tradução nossa).
Quando entramos no surgimento dos estudos performáticos, também entramos uma visão mais ampla e antropológica dos termos relacionados. Reinelt vai pontuar esta questão justamente ao desenvolver seu texto “The Politics of Discourse: Performativy meets Theatricality”, desde o aparecimento e uso dos termos performance, performatividade e performativo. Começando por performance, evidencia a diferença da Performance Teatral para a Performance Art em que nesta última o corpo é o lugar e material da execução que por sua vez é o próprio processo de feitura. Tem por características o imediatismo, a não repetição e a não reprodução (REINELT, 2002). Essas características que Reinelt traz em relação a Performance Art podem também ser encontradas no conceito de performance em um olhar mais abrangente de Erika Fischer-Lichte:
Uma performance ocorre na – e através da – co-presença física de actores e espectadores. Para que ocorra, dois grupos de pessoas, que agem como “fazedores” e “observadores”, têm de se juntar num determinado tempo e num determinado lugar de modo a partilharem uma situação, um lapso de tempo. Uma performance surge desse encontro – a partir da sua interação. (FISCHER-LICHTE, 2005, p.174).
Nestes aspectos poderíamos aparentemente aproximar intimamente as características da Impro ao conceito de performance já que na maioria das montagens de Impro o corpo é o lugar e material de execução, por vezes só existindo em cena a/o improvisadora/o como material e lugar de criação de movimento e ação. Na maior parte das produções durante os anos a Impro inclusive se relaciona com a mímica como recurso expressivo e técnico quando se quer figurar imagens e espaços em cena. O trabalho de improvisador/a vai partir e se configurar no seu corpo, espaço de criação e conexão com o público. O processo de feitura e do encontro com o público também é na Impro, como vimos no início, a base da própria linguagem e, por ser improviso tem em si as características do imediatismo, da não repetição ou reprodução. Anthony Frost e Ralph Yarrow, na segunda edição de seu livro “Improvisation in drama” relacionam diretamente a Impro com os conceitos de performance (já pensando a palavra para além do seu uso como “desempenho” em língua inglesa, incluindo assim perspectivas dos Estudos de Performance), ao definir a Impro já na introdução da edição:
Improvisação é um modo particular da atividade de performance em que as características chaves de “performance” podem ser precisamente localizadas. Isso se dirige como performances (a produção de um trabalho que é feito “na hora”, ou é explicitamente aberta a alterações durante a apresentação) e como a cultura no corpo de habilidades e atributos da performatividade – treinar para realizar performance, desenvolvimento de recursos individuais ou de grupo, da aptidão para renegociar o ser e fazer no mundo.
A primeira versão deste livro (1990) mapeia uma história e teoria da improvisação no trabalho teatro paralelo a uma taxonomia de sua prática. Identifica improvisação como um modo produtivo e performativo de comportamento, e se preocupa em situar particularmente dentro do espectro da prática teatral, identificando como, onde e quando se opera como marca de estilo em produções e um modo de treinamento de performers. Desde então, muito deste território tem sido re-atravessado em termos da teoria da performance, e toda uma gama de publicações têm aparecido, focando nos treinadores de performance e fazedores no contexto em que trabalham; muitos desses livros contém exemplos explícitos de exercícios e jogos objetivando propósitos performativos específicos. (FROST e YARROW, 2007, p.1 – tradução nossa).
Nesta colocação Frost e Yarrow destacam as características do instantâneo e mutabilidade da Impro como características performativas. Apontam também o desenvolvimento do campo de estudos performáticos. Podemos relacionar seus apontamentos numa vertente da escola de Estudos de Performance que, como Erika Fischer-Litche, entende a performance como continuação dos Estudos e Teatro, em que o espetáculo de teatro como algo possível de ser analisado e entendido tendo a semiótica como instrumento de análise comum e preferencial passa a ter na fenomenologia o espaço no qual se debruça o olhar, centrando-se assim na experiência do/a espectador/a. O espetáculo deixa de ser algo mostrado à/ao espectador/a, este por sua vez é um participante cultural na feitura da “obra” que não é um objeto fechado. Fischer-Litche não se remete, como acontece em grande parte da Impro, na participação literalmente ativa e visível da/o espectador/a, mas com a questão do fator da copresença que proporciona assim a cocriação. A experiência do encontro é de abertura e transformação, mesmo que esta seja sutil e interior.
Por esta perspectiva, qualquer apresentação teatral, não somente em Impro, se enquadra com a ideia de performance. O que nos leva novamente a questionar inclusive a real existência do criar “na hora”, o não repetível, pois se todo espetáculo está embasado na experiência, na questão da copresença, sempre será diferente mesmo que “repetido”, e por isso, não foi repetido. Uma reconfiguração de entendimento que Richard Schechner, numa linha de estudos da escola estadunidense de Nova Iorque mais focada na antropologia, vai partir pela ideia de “comportamentos restaurados”:
Performances marcam identidades, dobram o tempo, remodelam e adornam o corpo, e contam estórias. Performances – de arte, rituais, ou da vida ordinária – são “comportamentos restaurados”, “comportamentos duplamente experienciados”, ações realizadas para as quais as pessoas treinam e ensaiam. […] Mas a vida cotidiana também envolve anos de treino de prática, de aprender comportamentos culturais específicos e apropriados, de ajustar e desempenhar os papéis da vida de alguém em relação as circunstâncias sociais e pessoais. […] Toda e qualquer atividade da vida humana pode ser estudada enquanto performance […].
E quanto às ações que são aparentemente “um-comportamento” – os Happenings de Allan Kaprow, por exemplo, ou um evento da vida cotidiana (cozinhar, vestir, dar uma caminhada, conversar com um amigo)? Mesmo estes são construídos a partir de comportamentos previamente experienciados. Na verdade, o dia a dia do cotidiano é precisamente sua familiaridade, está sendo construído a partir de pequenas parcelas de comportamento rearranjados e moldados de maneira a caber em determinadas circunstâncias. Mas também é verdade que muitos eventos e comportamentos são eventos que acontecem apenas uma vez. Seu “ineditismo” está em função do contexto, da receção, e das ilimitadas maneiras que as parcelas de comportamento podem ser organizadas, executadas e apresentadas. O evento resultante pode parecer ser novo ou original, mas suas partes constituintes – quando bem separadas e analisadas – revelam-se comportamentos restaurados. (SCHECHNER, 2006, p.28-29 – tradução nossa).
Pensar comportamento restaurados também é reconhecer a memória e experiência como fonte de criação. Voltamos cá a perceber que o criar “do nada” na improvisação é assim uma impossibilidade. Também traz, em paralelo com a última citação de Schechner, a possibilidade de treinamento, daí o desenvolvimento de uma técnica de improvisação e o surgimento de escolas e centros de Treinamento em Impro.
Uma das evidências de que mesmo na Impro, numa apresentação improvisada, há o fator da repetição, é a existência de uma estrutura, também chamada na Impro de formato[3]. A estrutura, ou o esqueleto de uma apresentação de Impro é um guia de organização e ação que pode ser desde algo muito simples, como definir que a apresentação terá 30 minutos ou apenas 6 cenas, até uma estrutura mais complexa que pode até ser estudada e traçada em gráficos caucasianos. Há na Impro formatos/estruturas famosos mundialmente que por assim serem são reproduzidos em todo o mundo, como é o caso do Teatro-Esporte e do The Harold. O Teatro-Esporte inclusive é uma marca registrada, uma estrutura criada por Keith Johsntone, a qual é preciso se solicitar a licença para sua execução, se for se seguir a estrutura do seu criador. Há campeonatos e ligas de Teatro-Esporte em todo o mundo. Esta estrutura se enquadra, dentro da Impro, na categoria de Match Improvisation, o formato mais popular entre os públicos mundiais em relação a Impro. Se categorizam por competições e execução de jogos de improviso de formato curto, em grande parte de suas apresentações. Em Impro existem dois tipos bem definidos de formatos gerais de espetáculos, o formato longo (longform) e o formato curto (shortform) e suas implicações estão relacionadas essencialmente ao tempo de duração das cenas conectadas.
A maioria do improv formato longo dura ao menos dez minutos e consiste em um número de cenas curtas editadas pelos performers[4] no palco, às vezes por um chefe de palco ou outra fonte de fora. As partes de um formato longo devem estar relacionadas de alguma maneira. […] Improvisação Formato curto dura geralmente menos de dez minutos e tende a não conter qualquer edição interna. (LIBERA, 2004, p. 121 – tradução nossa).
O The Harold é a estrutura mais famosa mundialmente em formato longo. Foi desenvolvida por Del Close em parceria com Charna Halpern, e esta estrutura há dezenas de livros dedicados, uma maratona anual em Nova Iorque de 24 horas de apresentações de diferentes grupos que executam o The Harold, assim como a escola UCB (Upright Citizens Brigade) com unidades em Nova Iorque e Los Angeles que baseiam seu programa no desenvolvimento do formato, e com isso possuem apresentações constantes e praticamente diárias de diferentes grupos com a estrutura The Harold.
Ainda sobre formatos/estruturas há também o formato livre (freeform) que pode ser aplicado tanto ao formato curto quanto ao formato longo. Se caracteriza por não haver uma estrutura prévia para as cenas a serem improvisadas. O que não significa que não há uma estutura no espetáculo, mas somente que ela será criada no enquanto se executa. O improvisador francês Gael Perry uma vez destacou, em conversa informal, que o formato livre é descobrir a estrutura durante a própria apresentação. O que aponta que uma estrutura existirá, será criada, e isso será possível e baseado nas memórias, experiências e “comportamentos restaurados”.
Nesta perspectiva de estrutura, mesma a que será descoberta no enquanto se apresenta, podemos entender que as diferenças em a Impro e o que podemos chamar de Teatro de Texto (que parte de um texto dramático pré-concebido) não são oposições ou distâncias em si. Ou seja, são questões de particularidades e especificidades de linguagem, como também pode-se pensar em relação ao Teatro de Formas Animadas, por exemplo. Se pensarmos que os elementos do Teatro de Texto estão presentes na Impro, inclusive a estrutura de um texto dramático – que por sua vez pela particularidade da linguagem será criado em cena, mas que atende por estruturas conhecidas repetidas ou re-articuladas e reinventadas – é possível se entender e conceber o treinamento em Impro pelo estudo de estruturas e práticas já existentes em Teatro. Assim também se pode perceber que a estrutura de um espetáculo de Impro se repete de uma apresentação para outra, mas não o que acontece em cena ou como acontece.
Pelos Estudos de Performance podemos inclusive perceber que a questão interativa da Impro com o público não é um diferencial e sim, uma maneira particular da linguagem, porque o Teatro de Texto também tem por essência a presença e participação do público no ato teatral:
É verdade que os actores determinam as pré-condições decisivas para o decurso de um espetáculo, pré-condições essas que são fixadas pelo processo de encenação. Todavia, não são capazes de controlar em absoluto o seu decurso. Ao fim e ao cabo, é a totalidade dos participantes que dá origem ao espectáculo. Isto não apenas minimiza, mas de facto exclui a possibilidade de uma pessoa individual ou um grupo de pessoas serem capazes de planear completamente o seu decurso, dirigi-lo ou controlá-lo. O espectáculo não pode ser controlado por nenhum indivíduo.
Por outras palavras: o espectáculo abre, assim, a todos os participantes, a possibilidade de, no seu decurso, se descobrirem como um sujeito que pode co-determinar as acções e o comportamento dos outros, e cujas acções e comportamentos são, de igual modo, determinados pelos outros. (FISCHER-LICHTE, 2005, p.174).
Pode-se então pensar que o grau, a intensidade, ou até mesmo a percepção da interferência do público pelo próprio público seja maior na Impro do que no Teatro de Texto, mas não é nula, ou seja, uma diferença entre as duas linguagens teatrais. Inclusive, essa participação da plateia na Impro também vem sendo questionada e provocada entre improvisadoras/es. Na sua curta e ao mesmo tempo forte tradição[5] a Impro se baseia em sugestões de espectadoras/es para a inspiração do que será criado no ato da apresentação, seja uma única sugestão de palavra no início do espetáculo, seja interferências no meio e fim votando no que preferem ou desejam ver, etc. Porém espetáculos como T.J. and David com os mundialmente prestigiados improvisadores estadunidenses T.J. Jagodowski e David Pasquesi partem do que se pode chamar de oferta cega. Nada é solicitado ao público diretamente, o espetáculo é criado e desenvolvido a partir do que o encontro, a presença daquelas pessoas no mesmo espaço e no mesmo tempo incita nos improvisadores, os dois simplesmente entram no palco, cumprimentam o público agradecendo a presença e dizem: “Confie em nós, tudo isso é inventado”[6]. A partir daí as luzes se apagam e quando voltam a acender algo já começou ali, num olhar, num gesto, numa respiração, num ranger de cadeira: uma oferta cega[7], uma proposta que não se teve a intenção de ser oferta para a improvisação, mas que é captada e integrada ao universo a ser inventado. Esse tipo de interação com o público não é muito diferente em questões de percepção da plateia para com sua interferência num Teatro de Texto.
Outros elementos estruturais do Teatro de Texto na Impro a se perceber em grande parte das produções são a existência da narrativa, como história da dramaturgia criada e as personagens. É aqui, que a Impro se distancia e desvincula dos conceitos de performatividade, performativo, referentes a Performance Art, “[…] gênero, surgido por volta do anos 1960, o performeur, o ‘performador’, não desempenha um papel, ele não imita nada, mas realiza ações e é muitas vezes o próprio objeto de sua presentação, verbal ou gestual.” (PAVIS, 2017, p. 225). Nestes aspetos, existe a característica do antiteatro, que também é um elemento da performance, como Performance Art em sua história geral citado por Reinelt em “The Politics of Discourse: Performativy meets Theatricality”:
Este uso do termo performance é relacionado à uma história geral das vanguardas ou do anti-teatro, tomando seus significados da rejeição de aspectos da prática do teatro tradicional que enfatiza o enredo, personagem e referencialidade: resumindo, princípios Aristotélicos de construção e noções Platônicas de mimesis. A rejeição da soberania do texto, da autoridade autoral ou da direção, em favor do jogo-livre da performance liga-se aos primeiros experimentos das vanguardas do início do século com as décadas de 1960 e 1970 com o Living Theater, e o Teatro Laboratório Polonês de Jerzy Grotowski. (REINELT, 2002, p. 154 – tradução nossa).
Por este olhar antiteatral percebe-se que a Impro está, em geral, vinculada a este teatro tradicional do texto, mesmo não havendo o pré-texto, pois, na maior parte de suas produções, se propõe a criar no momento da apresentação o enredo em si, o texto, mantendo as estruturas dramáticas das personagens, referencialidade Aristotélicas e Platônicas. Isso principalmente no que diz respeito aos espetáculos de longform que se propõe, cada vez, a parecer com peças não improvisadas. Kenn Adams em seu livro “How to Improvise a Full-Length Play: The Art of Spontaneous Theater” propõe estruturas e treinamentos para se atingir um “almejado” tipo de qualidade na dramaturgia cênica em Impro que o Teatro de Texto tende a alcançar a partir do convencional tempo de maturação e pesquisa em ensaios e estudos:
Pense na melhor peça que você já viu. Lembre de quão bem foi interpretada, quão graciosamente foi dirigida, como foi lindamente composta. Lembre o quão ridiculamente lhe fez gargalhar ou quão profundamente e ternamente lhe permitiu chorar. Lembre das personagens. Lembre do diálogo. Lembre da história. […]
Agora, e se esta peça pudesse ter sido improvisada? (ADAMS, 2007, p. XIII).
A existência de obras e argumentos como a de Adams para o como e o que atingir no Teatro de Improviso, assim como uma necessidade em parte de improvisadoras/es em ter a Impro mais reconhecida como arte teatral, aproxima sua feitura dos elementos cênicos do Teatro de Texto. Em espaços em que se propõe uma linguagem não convencional (como é o Teatro de Texto) e que se aproxima e articula com o entretenimento cômico, principalmente pelos formatos curtos competitivos e a escolha maioritária pelo gênero da comédia na produção em Impro, há a barreira da classe artística de ver a linguagem como algo “sério”, com aparato e arremate, algo que não seja vinculado ao senso comum de improviso[8]. Pode-se então, por o entendimento destes caminhos de conceitos, que a Impro, e cada vez mais grupos de improviso, tem buscado se vincular com aspectos do teatro convencional tradicional na encenação e estrutura dramática desenvolvida em códigos cênicos e enredos. Porém, é preciso lembrar que um caminho “antiteatral” não é uma busca da performance, mas também de algumas vertentes do próprio teatro, a partir da criação do “Teatro Moderno”. O aspecto “antiteatral”, contra uma “teatralidade”, criou por si só uma nova teatralidade, uma nova força de se relacionar e criar elementos teatrais:
[...] é inegável que a encarnação da personagem pelo ator foi um dos principais alvos de ataque dos anti-teatralistas que, olhados por esse ângulo, podem ser vistos como precursores de uma nova teatralidade, não mais baseada na interpretação de um texto dramático por atores, mas na mobilização de recursos de espaço, luz e movimento, ou da palavra concreta e poética, para sua constituição.
[...] O teatro épico de Bertolt Brecht seria um dos marcos dessa transformação, por definir uma mudança de regime do espetáculo e incorporar o espectador à criação do simulacro cênico, e a seu processo produtivo. É evidente que, no caso de Brecht, a mudança visava a objetivos políticos bastante definidos. Mas a partir dela, o que se põe em ação é um mecanismo de revelação da teatralidade pelo esvaziamento do próprio teatro.
É uma visão semelhante à de Denis Guénoun, para quem o teatro contemporâneo confessa o gosto de mostrar e oferece ao espectador a “sobriedade lúdica e operatória” do jogo, e não o efeito de ilusão da representação. Para o filósofo francês, a teatralidade é o “por em jogo”, ou melhor, é o movimento de passagem para o jogo, viabilizado pelo gesto de mostrar a coisa em si, em sua fenomenalidade. De acordo com Guénoun, “o aparecer aí da coisa é a própria teatralidade”. (FERNANDES, 2011, p.13-15).
O termo teatralidade em si vai ser usado em algumas vertentes, como nos estudos de Josette Féral, para designar o teatral fora do universo teatral, a ter elementos reconhecidos pelo olhar da/o espectador/a ou daquele/a que faz em um ato performativo ou operação cognitiva dela/e própria/o. (FERNANDES, 2011, p. 17). De qualquer forma, a derivação de teatral pelo termo da teatralidade compete o reconhecimento de padrões (comportamentos restaurados?), códigos e referências de uma estrutura teatral reconhecida, mesmo que a perspectiva da participação do público, e com isso todo o direcionamento para qual o teatro se engaja em conquistar e/ou contribuir, se altere entre passivo e ativo. Pode-se pensar que é na receptividade e neste direcionado que se instaura também a mudança do entendimento dos termos, a partir de a experiência e o fenômeno em si, o encontro e copresença ganhem o foco diante de uma leitura semiótica do ato teatral. As oposições entre performatividade e teatralidade se tornam complexas, pois acabam por fagocitarem-se, em diferentes proporções de evento a evento, mais do que se separarem.
Voltando a Féral, em texto recente, a ensaísta atenua a oposição estabelecida nesse ensaio inicial [“Performance e teatralidade: o tema desmistificado”], sustentando que a performatividade é um dos elementos da teatralidade e todo espetáculo é uma relação recíproca entre ambos, Sublinha que a performatividade é responsável por aquilo que torna uma performance única a cada apresentação, enquanto a teatralidade é o que a faz reconhecível e significativa dentro de um quadro de referências e códigos. O que varia é grau de preponderância de uma ou de outra. (FERNANDES, 2011, p. 18).
A tentativa de distinção ou até mesmo separação da performatividade e da teatralidade por vezes pode ser resultante da análise e estudo, mas eventualmente os conceitos se esbarram, sangram e borram em si. Fernandes, em sua análise da teatralidade e dos Estudos de Performance, revisita Féral pontuando as competências do teatro em levar ao palco uma semiologia formativa, a estrutura narrativa, a representação e os códigos formais em oposição a fluidez, os fluxos de desejos que se implicam ao fenômeno performático. Mas, mesmo ressaltando estes pontos de discussão, pontua:
Ainda que oponha os dois conceitos, percebe-se que uma das principais intenções de Féral é considerar a teatralidade a resultante de um jogo de forças entre duas realidades em oposição: as estruturas simbólicas específicas do teatro e os fluxos energéticos – gestuais, vocais, libidinais – que se atualizam na performance e implicam criações em processo, inconclusas, geradoras de lugares instáveis de manifestação cênica. Por recusar a adoção de códigos rígidos, como a definição da personagem e a interpretação de um texto, o performer apresenta-se ao espectador como um sujeito desejante, que em geral se expressa em movimentos autobiográficos e tenta escapar à representação e à organização simbólica que domina o fenômeno teatral, lutando por definir suas condições de expressão a partir de redes de impulso. (FERNANDES, 2011, p. 18).
A Impro, em seu padrão de formato longo ao menos, talvez seja um exemplo pontual dessa fagocitose de termos por ter em si toda uma alcunha do teatral e as dimensões da performatividade em atividade enquanto performance e nas compreensões sempre mutantes da Performance Art. Encontram-se no Teatro de Improviso desde o enredo, a noção de personagem, códigos cênicos[9], ao mesmo tempo uma base sólida nos ideais de relações com o público, do encontro, da paradoxal não-repetição, do fator de criação no enquanto se apresenta. Pode-se dizer que possuiu uma teatralidade tanto daquela criticada por antiteatralistas, quanto um tanto de uma nova ou outra teatralidade que está vinculada ao ver o processo de criação, verdadeiramente ve-se a criação em cena tomar forma e perceber a interferência da copresença das/os participantes. Mesmo havendo (ou não) personagem na cena de Impro, vê-se e se é cúmplice da/o improvisador/a e seu trabalho, ou melhor, ver a improvisação que toma forma, que fracassa, que se ergue, o construir da edificação da peça. É a relação de jogo explorada como espetáculo, da mesma maneira que se vai assistir a uma partida de futebol e que, por mais que se tenham ali jogadoras/es que se dedicam a isso todos os dias e treinam exaustivamente, que tenham inclusive as “jogadas ensaiadas”, o jogo é imprevisível, precisa ser jogado e diante de nós que assistimos, se desvenda a cada segundo. O jogo esportivo também é um bom paralelo para se pensar as regras e seu real “poder” em cena. Todo jogo esportivo pensa o quebrar das regras e também possuiu a figura da/o juiz/a, da/o avaliador/a para dúvidas de limites e aqueles momentos que as regras talvez não sejam exatamente aplicáveis. Prever que se vai quebrar as regras é também promover a quebra (e por assim ser, criar uma nova regra). Um/a jogador/a de futebol “não pode” fazer falta na/o adversária/o que está com a bola dentro da pequena área. Mas na realidade, ela/e pode cometer a falta, podendo ser penalizada/o com cartão, expulsão e seu time sofrer a cobrança de um pênalti, ou… a/o juiz/a também pode julgar que não foi bem uma falta… Como saber? O mesmo para a Impro, pensando desde as regras de jogos de improviso no Match Improvisation quanto a estrutura de espetáculo. O jogo é “Uma atividade aceita pelo grupo, limitada por regras e acordo grupal; divertimento; espontaneidade, entusiasmo e alegria acompanham os jogos; seguem par e passo com a experiência teatral; um conjunto de regras que mantém os jogadores jogando.” (SPOLIN, 2001, p. 342). As regras e a estrutura são um combinado entre as/os improvisadoras/es que no fazer da peça serve de guia, mas que facilmente, devido às circunstâncias da copresença, é jogado pela janela para que o jogo seja jogado em cena. Complementando o pensamento de Spolin, podemos ainda aliar a ideia da copresença que se pode ler das três características básicas que Johan Huzinga condiciona para possibilitar o jogo:
[…] é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana.”. (HUZINGA, 1993, p. 33)
Estar presente no mesmo espaço ao mesmo tempo para uma atividade voluntária é uma condição, uma premissa para a arte teatral em geral. A teatralidade de se estar em jogo. O Teatro de Improviso, por ser improvisado, mostra a ocorrência do jogo mesmo sem tentar mostrá-lo pelo simples fato de se colocar declaradamente em jogo quando se determina ser improviso.
Para Huzinga o jogo cria ordem onde existe caos (HUZINGA, 1993). Pensar um espetáculo de improvisação por esta perspectiva é pensar também sobre a recepção/criação do público. O público é parte fundamental do jogo, do pacto da criação, pois, em suas diferentes aberturas, a cada espetáculo é o público quem sugere ou oferta a inspiração ou definição de cenas e temáticas de espetáculos. O pesquisador brasileiro Zeca Carvalho, em sua recente publicação O Corpo no Teatro de Improviso em que discute o elemento da corporeidade na Impro num paralelo de observação entre grupos brasieliros e portugueses, reflete na delimitação de sua pesquisa sobre termos da corporeidade e performatividade no campo dos Estudos de Teatro, e se depara com o ponto crucial da presença participativa do público na performance. A questão da co-presença que determina o ato do encontro único:
A efemeridade e presença do público estão sempre a orbitar no fazer teatral em si. No Teatro de Texto, por vezes isso pode ser "mascarado" pela construcão ilusória da quarta parede e uma "leitura" previamente dirigida e orientada do público do que se "entender" do espetáculo. Na Impro é complexo falar de uma relação semiótica de “leitura” da obra, a partir do momento que não se sabe o que virá à cena, não se podendo necessariamente prever ou induzir previamente algo a ser entendido. Ao mesmo tempo que o Teatro de Improviso por si só se debruça na cumplicidade com o público daquele espetáculo, daquela(s) história(s) ser improvisada, acentuando o fator da experiência e do encontro, da copresença daquele grupo de pessoas num mesmo espaço e tempo. O significado, a “leitura” que seja, é descoberta por todas/os no enquanto, no jogo (teatral?). Objetos concretos ou abstratos surgem e se desvela em conjunto o que e como são manipulados, e reestruturados ou reafirmados de cena a cena. Até mesmo em espetáculos de formato curto, explicitamente em jogos de improviso com regras estabelecidas na premissa, como qualquer evento esportivo (enquanto performance?) se reestrutura e resignifica pelo momento presente, imperando não mais a ideia de regra, mas a ideia do que nos acontece ali, no nosso fenômeno particular.
Para Fischer-Lichte (2016), é fundamental para os estudos de teatro a percepção de que em performance ocorre através da co-presença de atores e espectadores, emergindo do encontro desses actantes. constituído para pensar o espetáculo, e não seus resquícios, o campo dos estudos de teatro exalta a performance em seus aspectos de ritual, presença e encontro: rejeita-se a ideia de um teatro para o espectador, a qual é substituída pela perspectiva da obra teatral como processo e resultado desenvolvidos com o espectador. Em uma performance, pressupõe-se um encontro real entre um número limitado de corpos viventes de pessoas em um contexto definido pelo espaço e pelo tempo, as quais podem partilhar uma experiência que não será reproduzida novamente (PHELAN, 1993). (CARVALHO, 2019, p. 42).
O que se pode perceber ainda é que a/o improvisador/a parte de si (e não “do nada”) pra criar, então, de certa forma, todo espetáculo é autobiográfico na perspectiva que se cria a partir das próprias experiências anteriores combinada ao fenômeno presente. Autobiográfico não no sentido de contar sua história pessoal, mas de manifestar em gesto, movimento e fala sua visão particular de mundo. É se perceber indivíduo em discurso, presença e evidência (e com isso um papel político social de estar em cena) mesmo havendo a ideia de personagem. Esta/e, por sua vez, tem um olhar instantâneo (redes de impulso), não filtrado por discussões e pesquisas de personagens dentro de um discurso de montagem, e parte da perspectiva “espontânea” do que a/o improvisador/a pensa e articula com o momento presente. É pensar que se tem uma ativista feminista e cena e que a ela foi definido numa improvisação ser uma mulher submissa como personagem. Nas suas escolhas imediatas seria muito natural a ela cavar uma reviravolta para esta mulher, ou ainda explorar a violência da relação evidenciando as problemáticas, pois estes são os assuntos e vivências que a permeiam em ação, discurso e cotidiano. Sim, num espetáculo de Texto o mesmo pode acontecer, mas isso ocorrerá em discussões sobre cada cena, sobre cada movimento, sobre as outras personagens: haverá debate e definição a partir de uma análise prévia, antes de se levar ao público. Na Impro, este processo de debate ocorre no próprio fazer, por meio das ofertas (cegas, abertas ou fechadas) e no envolvimento do público.
A Impro, assim como qualquer forma teatral e os respetivos Estudos de Performance e de Teatro, está em constante mudança. Em eterna atualização. Ao mesmo tempo que se tem vertentes e grupos interessados em criar algo próximo ao Teatro de Texto, outras/os querem encontrar novas formas (ou novas articulações que o Teatro de Texto ainda não tenha convencionado), como é o caso do formatos de Match Improvisation que se articulam mais com estruturas esportivas do que teatrais, ao mesmo tempo que flertam com os códigos cênicos do teatro. Os trabalhos de improvisação seguem a se desenvolver nesse híbrido ou nesta fagocitose antropológica das noções de performatividades e teatralidades.
[2] Que na tradução do inglês para o português, performance também poderia ser lida como desempenho, nos casos apontados neste primeiro momento do texto.
[3] Preferimos aqui o uso da palavra estrutura, pois em Impro a palavra formato também é usada para designar categoria de espetáculos em Impro em relação a sua duração: formato curto ou longo. Ressalta-se ainda que estrutura aqui é ligada a ideia de esqueleto, o conjunto de acordos para uma apresentação, não confundir o uso da palavra estrutura aqui com a definição de termo em “Improvisação para o Teatro” de Viola Spolin em que estrutura significa: “O Onde, Quem e o Quê; o campo sobre o qual o jogo tem lugar.” (SPOLIN, 2001, p. 339). Esta definição de Spolin tem haver com o estruturar, traçar os elementos edificantes de uma cena improvisada dentro de um jogo teatral.
[4] Na citação de Libera, originalmente em inglês, encontramos o uso da palavra performer para designar a/o artista que executa a performance teatral.
[6] “Trust us, this is all made up” é justamente o nome do documentário de 2009 sobre o trabalho de T.J. e David, título que referencia a frase dita no início do espetáculo.
[7] Ainda existem mais dois tipos de oferta na Impro, a oferta aberta (a intenção de uma ideia para cena, mas sem muitas definições. Ex.: “Eu não me sinto bem…”, não se sabe o que se sente, porque se sente daquela maneira ou que se espera de quem está na cena) e a oferta fechada (a sugestão que já vem com todas as definições, quase como uma verdade para a cena. Ex.: “Mãe, eu estou grávida!”, há a definição da relação entre as personagens e um fato que é a gravidez).
Referências Bibliográficas
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CARVALHO, Zeca. (2019). O Corpo no Teatro de Improviso. Porto: 5livros.pt.
CHACRA, Sandra. (2005). Natureza e sentido da improvisação teatral. São Paulo: Perspectiva.
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FERNANDES, Silva. (2011). “Teatralidade e performatividade na cena contemporânea”. Revista Repertório, no. 16. Salvador: UFBA, p.11-23.
FISCHER-LICHTE, Erika. (2005). “A cultura como performance: Desenvolver um conceito”. Revista Sinais da Cena, no. 4, dezembro 2005. Lisboa: Campo das Letras, p. 73-80.
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PAVIS, Patrice. (2017). Dicionário da performance e do teatro contemporâneo. São Paulo: Perspectiva.
REINELT, Janelle. (2002). “The politics of discourse. Performativity meets theatricality. In Performance: Critical concepts in literary and cultural studies, vol. 1. Londres & Nova Iorque: Routledge, p. 153-167.
SCHECHNER, Richard. (2006). “What is performance?”. In Performance studies: an introduction, 2a. ed. Londres & Nova Iorque: Routledge, p. 28-51.
SPOLIN, Viola. (2001). Improvisação para o teatro. 4ª. Ed, São Paulo: Perspectiva.
YAGI, Naoko. (1999). Towards a definition of performance improvisation. Tese de Doutoramento em Filosofia Universidade de Warwick, The School of Theatre Studies.
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