segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A ORIGEM DO MEDO

A origem do medo... 

Neste Halloween estive em cena com o grude Improviso Sem Rede, Portugal, com o espetáculo “A Origem do Medo”. Apresentamos na Quinta da Ribafria, lugar que eu pessoalmente não ando sozinha nem para ir ao banheiro/casa de banho. Não me leve a mal, é lindo... mas eu preciso de gente comigo.
Aliás cada vez mais, ninguém solta a mão de ninguém.


Quinta da Ribafria. Foto: Sandra Cruz

Espetáculo de Terror de Improviso!
Como estrutura do espetáculo sob direção de André Sobral (😁👍), partimos de crimes reais e da premissa da natureza dos monstros bem (des)humanos. A primeira versão do espetáculo apresentada em outro ano tinha como mote a criação da história da origem de um monstro clássico a la Drácula. Desta vez partiu-se daquelas histórias que assustam por serem de verdade.

Em cena eu, André Sobral, Paulo Cintrão e Ricardo Karitsis. Cada um/a de nós escolheu 2 crimes reais para estudar e só divulgou para as/os demais do elenco a manchete. Ex.: “A menina que matou os pais”.


Da direita para a esquerda: Paulo Cintrão, eu (Luana Proença), André Sobral e Ricardo Karitsis. 
Foto: Zeca Carvalho

O público então chegava a Quinta da Ribafria e votava em qual manchete seria a inspiração da história a ser improvisada. Votava colocando flores nos cestos referentes a cada manchete à luz de lanternas.

Nós do elenco éramos avisadas/os da escolha do público, e depois de um ritual de início de espetáculo do grupo em roda, nos posicionávamos para iniciar. A pessoa que sabia da história era a responsável por abrir o espetáculo contando o ato criminal em si, mas sem revelar as causas e acontecimentos que levaram ao ato. Ora pois! Isto seria improvisado.

O que havia mais definido? 

Mulher só faz personagem mulher e homens, homens. Uma perspectiva mais realista para não provocar risada por caricatura. Para compor as personagens podíamos usar como inspiração os sete pecados capitais.

A condução de espaços e deslocamento de público, assim como início e fim de cenas, era realizado pelo ascender e apagar de luzes. A pessoa de nós que puxava a história para outro espaço (a cada momento poderia ser alguém diferente) ia ascendendo os interruptores por onde passava até o espaço desejado, enquanto a última pessoa de nós que se posicionava também por último junto ao público, apagava as luzes deixadas no caminho. Quase como migalhas de pão em João e Maria.

Cabe lembrar que eu super me perdi nos corredores na primeira vez que treinamos o espetáculo... ok, sou eu, isso não seria novidade, mas é muito corredor. E sim, aranhas... sim, eu chorei.

Foi definido também que a última cena aconteceria no espaço da Biblioteca e seria a cena do crime ou prévia deste, pois já nos havia sido contado de início o que acontecia depois. A biblioteca era o espaço onde caberia o público inteiro confortavelmente e tinha acesso direto à saída, além de outros 2 ou três quartos na parte superior. Como final e “agradecimento” nos posicionávamos na escada onde cenas/fotos reais das histórias eram projetadas sobre nós e a parede. Usamos então fatos reais para criar uma ficção que depois era lembrada que foi criada a partir de uma atrocidade real. Que uma pessoa foi capaz de fato de realizar tal ato. 
Aqui me remete ao tipo de estrutura que trabalha a partir da memória: “se teatro fosse um verbo, seria o verbo lembrar” (parafraseando por memória Anne Bogart em “A preparação do diretor”). Uma visita a um continente de memória, de manter viva a história, para que a história não se repita (por isso que Museu queimado é um ato de assassinato, esquecer a história promove terreno fecundo para a repetição... ditadura, sucumbir ao fascismo...). Não repetir a história era o meu mantra antes do público entrar, de mãos dadas com o Cintrão no escuro (medo da porra de ficar sozinha) eu repetia: “Que aprendemos a não repetir a história”. O que, numa perspectiva outra deste argumento, em improviso, é um tanto impossível. 

Esse trabalho de edição de imagens para o final foi realizado pelo nosso técnico, Pedro Caseiro, sem que nós tivéssemos acesso prévio. Ele também “dimerizou” as luzes de alguns ambientes, trabalhou cores do espaço e além disso a sonorização que era constante e estabelecia uma atmosfera para a tensão proposta em um espetáculo de terror. A produção (Sandra Cruz com o apoio da Catarina Ramos) cuidou ainda do cheiro de incenso que eu identificaria como defumador, meio de igreja fechada. Sinestesia que também começava com uma sangria e comes na salas de fora onde se votava a história. Figurino preto que não nos distanciasse da realidade do público para que assim nos misturássemos de certa forma ao grupo itinerante. Maquiagem ressaltando levemente a ossatura do rostos e profundidade dos olhos, o que nós distanciava-se na outra forma da plateia.

No mais, que improvisássemos a história tendo em vista um percurso não muito cansativo ao público, pensar a construção de plataforma, etc. Improviso: espontaneidade consciente.

Fizemos duas sessões, uma às 22h e outra à meia noite. 

Dentre as escolhas nossas na estrutura alguns pontos que me interessam pessoalmente foram discutidos, entre eles:

A necessidade de dizer, ou até de provar, que o espetáculo é de improviso. Este questionamento veio porque seria também uma possibilidade muito plausível de dúvida do público. Poderia-se pensar que que nós tivéssemos ensaiado 8 histórias ao invés de improvisa-las.
Dizer e evidenciar o improviso traz uma grande cumplicidade com o público. Isso é extremamente poderoso. É a comprovação que aquele fenômeno é único. Isso nos faz dar importância, nos sentirmos importantes. Ao mesmo tempo que traz certas condescendências que uma relação cúmplice traz. Mas, ao meu ver, qualquer forma o teatro é assim: como público, se aceita que um helicóptero em cena seja apenas um som que vem dos bastidores: sabe-se que não há nada lá além de caixa de som e permitimos que assim o seja aceitando a sugestão. Percebem, é sempre o jogo do improviso, da aceitação a partir do público (por isso acredito tanto no treino de Impro para qualquer linguagem teatral. O público joga o jogo da impro conosco). Também qualquer fenômeno teatral, mesmo que minuciosamente ensaiado e marcados, é único e as pessoas são importantes por demais. Mas voltando à improvisação como linguagem: as criações, conexões e sensações ganham uma potência a mais na relação de cumplicidade pois não foram “testadas”. É um tanto a alimentação do mito da genialidade e do talento (porque o  treino não é levado em conta nesses julgamentos). E justamente por essa graça (e não necessariamente comédia), quando algo dá “errado” ou não é tão bom quanto queríamos, há uma certa condescendência do tipo: “ah... mas é que foi improviso!”. Não é sempre assim, não é mesmo, mas essa atmosfera permeia e é sempre uma possibilidade. E me perturba, porque por uma perspectiva a Impro deixa de ser linguagem e forma de arte para virar “desculpa”. Volto a dizer que esses pensamentos todos vieram diante do espetáculo por conta da estrutura de escolha de histórias que colocaria em dúvida se era improvisado ou não. Não é uma reflexão sobre algo que aconteceu. Eu particularmente, não me importo com a dúvida, e até gosto que ela exista. Digo isso entendendo muito bem a potência da declaração: “Isto é improvisado” tanto quanto a desvantagem da conotação “de improviso” no i popular. É nesta conotação que se encontra a minha origem do medo ao qualificar um Espetáculo de Impro. O que fazer diante disso: treinar! Que nunca me deixem “passar” na qualidade por ser improviso.

E jogo então a provocação a qualquer espetáculo de Impro: quando é necessário afirmar que é Impro? Em que estrutura? E por que? E também: por que não afirmar? Temos por aí vários exemplos, como os improvisadores estadunidenses T.J. Jagodowski e David Pasquesi que não “pedem” sugestões ao público...

Acredito que para cada espetáculo a resposta venha a ser diferente, mesmo sendo sempre Impro.


E seguimos, o caminho, umas/uns às/aos outras/os, nós perdemos, encontramos algo novo, retomamos a estrada. Sinceridade como guia. Expondo os medos, entendendo suas origens, encontrando possibilidades outras, num salto Sem Rede, mas sempre de mãos dadas. Ninguém solta a mão de ninguém.

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