segunda-feira, 11 de março de 2019

Dos perigos de se tornar um/a Improvisador/a

Devo dizer que o título desta postagem é perfeito para o que eu vou dizer, mas provavelmente não é o que você está a pensar que eu vou dizer. A imagem da água também. Bebe uma água, lê com carinho e abertura. Beber água é tão importante quanto se perceber. Aliás, beber água é se perceber: o que você precisa e como passa seu dia.

Fonte: https://mamaonoticias.blogspot.com/2016/09/e-incrivel-o-que-um-copo-dagua-mais.html

O que quero dizer que eu realmente vou falar dos "perigos" que eu vejo em se assumir e se dedicar a ser um/a improvisador/a, mas não devem ser exatamente aqueles perigos que vem à mente de imediato.

Primeiro me pergunto o que se é ser tornar um/a improvisador/a? e me perfunto com o mesmo teor do que é se tornar artista? No meu caso, o campo é o Teatro, este é o contexto, mas sinta-se livre para adaptar para a arte em geral.

Para esta questão vou me apropriar de uma conceituação de Augusto Boal. Ele foi um diretor, professor e encenador brasileiro que foi nomeado ao Prêmio Nobel da Paz pelo seu trabalho com Teatro, o Teatro do Oprimido (que, entre outras formas de Teatro desenvolvidas por Boal, tem a improvisação bem ali no treinamento e estrutura de encenação... E por isso ele aparece citado em várias bibliografias de Impro, fica a dica!) Boal usa o conceito de não-ator/atriz para as pessoas que em determinado momento desempenham a função de ator/atriz, mas que não se dedicam à profissão. As/os profissionais sao, por ele, chamados de atrizes/atores e dedicam tempo, treinamento, energia, projetos para seu desenvolvimento na área e o desenvolvimento da própria área. Gosto desde ponto de vista porque não desvaloriza o trabalho de ninguém, mas mantém um olhar quanto à intensidade de empenho. Só dispensaria a negação e palavra "não" para o conceito, mas transmite a idéia. 

Tenho para mim que quando você escolhe se dedicar à profissão de artista, a sua vida vai girar em torno disso, como acontece com um/a médica/o, advogada/o, etc. Porém, não tem botão de desligar. Você vai subir na roda gigante e olhar para os carros e analisar o padrão de cores, a direção de arte, as linhas simétricas ou assimétricas da vida. Nosso objeto de estudo é a vida cotidiana, então isso nos grita a todo momento. (Eu também acredito que em qualquer profissão não se desliga a maneira de pensar e ver o mundo a partir deste filtro, mas o grau de interferência é menos visível ou perceptível).

Ao escolher ser artista, se isso for tão somente uma escolha, tudo vai lhe ser político (não necessariamente politizado), roubando mais um pouco dos dizeres de Boal: Todo teatro é político. Tem algo a dizer, um ponto de vista, uma ideia, ou uma pergunta.

Bebe um gole de água.

Dito isso, olho para a Impro e vejo a interferência ainda mais ativa na minha vida e na de outras pessoas que se debruçam sobre ela (vida ou Impro). Gente, pelo amor da Deusa, sem romantização de como artistas são especiais, etc. Porque, até pelo próprio olhar do Boal, todas/os somos artistas (não-atores/atrizes). Sim, Impro! 

Quando se começa a dedicar a arte da Impro você entende a aceitação como princípio longe de ser um limite ouuma regra do que se pode ou não fazer. Nas primeiras aulas, você aprende a dizer "sim" para basicamente toda ideia colocada em cena. É uma metodologia de aprendizagem MUITO eficaz, pois quebra comportamentos bloqueadores que estão enraizados em nós socialmente. Mas com o tempo, é possível perceber e vivenciar que a aceitação inclui o "não" também, por isso é um princípio. Nas últiams aulas com Rich Baker no Second City de Los Angeles (2018) ele fazia um exercício no final da aula do último dia em que tínhamos que negar tudo, fazer o oposto de tudo que aprendemos. E as cenas eram divinas, divertidíssimas, coerentes... E por que? Porque mesmo fazendo tudo "errado", aceitávamos a proposta de fazer tudo "errado".  E para fazer "errado" tínhamos que ouvir o que acontecia em cena, mesmo para não ouvir o que acontecia em cena. Ok, vou dar um exemplo: "Temos que ouvir nossa/o colega em cena". Para quebrar essa premissa, ou seja, não ouvir a/o colega em cena, eu tinha que ouvi-la/o para me provocar a não ouvir. Porque o ouvir no caso é no sentido de escutar falas e sons, mas também ver o que se faz, trocar olhares, o que o gesto e o toque propõe, estar presente.

Aí então também percebe que existe uma pessoa muito importante para ouvir, não mais não menos importante, e extremamente importante (repito de propósito porque é importante): Você. Ouvir a sua voz, suas propostas e vontandes tanto quanto de quem está à volta. Em adendo para acentuar que eu realmente não vejo uma diferença entre ser atriz/ator e improvisador/a (além de se especificar numa linguagem teatral, mas que ainda é teatro), trago este trecinho de A Porta Aberta de Peter Brook: "Na Índia, os grandes contadores de histórias que narram o Mahabharata [...] Têm um ouvido voltado para o seu interior e o outro para fora. É o que deveria fazer todo ator de verdade: estar em dois mundos ao mesmo tempo." (2005, p.27).

Essa preciosidade de se ouvir me fez muito sentido no me ouvir na condição mulher (Simone Beauvouir). Ouvir meu corpo em suas necessiades e limitações que mudam de dia para dia, de hora para hora. Ouvir meus ideais, a minha política, as minhas tolerâncias e intolerâncias... Acredito que agora começa a ver os perigos dos quais vou falar.

Bebe um gole de água.

Aprendi como improvisadora/atriz e mulher que eu aceito discursos e comportamentos machistas, o que não quer dizer que os tolere. Como assim? Em cena (ou fora dela): quando eu escuto (no sentido da escuta plena, presença) alguma sugestão sexista, eu a recebo, não a ignoro. E é isso. Eu não a ignoro. Eu a olho de frente e não deixo passar despercebida, fingir que não vi porque é feio ou porque a encarar vai "constranger" quem queria ignorar (que falou/fez ou ouviu/viu). Não significa cair numa briga. Por favor, deixemos este esteriótipo de que a mulher que vai falar sobre o que a afeta e incomoda, que 98% (talvez mais) das vezes vai ser sobre questões machistas, que ela vai brigar, ficar louca ou "histérica". Esse olhar é extremamente velho e... adivinha? Machista. Lembrando que o machismo não existe só no homem, é de toda uma sociedade que o sustenta, como podemos ver pela "ministra" da Mulher e da Família no Brasil. Então, respire e me escute. Não tem nada em caixa alta (caps look) aqui, então não há gritos ou esbravejamentos. Abre uma cerveja, um vinho, serve um suco ou um chá. Estamos bem? Siga quando estiver pronta/o. Se escute também.

Aceitar a existência das coisas é justamente usa-las, e não se resignar a elas. Pelo menos é o que eu aprendi na improvisação ao se aceitar uma ideia, ela não é uma condenação que me prende, é uma ferramenta, um degrau, um tijolo de consrução. Eu a uso, estou presente, há escolha. Há escolha. Percebe o perigo duplo: 1) tudo que trazemos para a cena vai ser ouvido, não vai passar despercebido e vai ser usado. Então não dá para "pedir" para deixar batido, fingir que não ouviu/viu/sentiu. Vai contra o princípio. Aquela é a oferta. 2) Há escolha: como vamos usar isso. E esta escolha está no afeto, em como nos afetamos, nas nossas políticas, em como ouvimos nosso interior em relação direta ao exterior.

Talvez fosse possível (e é, porque é uma escolha também) tentar fingir que não aconteceu. Mas tem que ser uma escolha de todo mundo, até do publico, porque estava lá. Mas aí está o perigo em se tornar improvisador/a: você agora está treinada/o, e você "quer", escolhe, ouvir/ver/sentir. Ignorar e fingir que não viu, vai ser uma escolha contra essa natureza.

E é aí que eu não entendo comentários do tipo: "a Luana sempre vai fazer a coisa ser sobre machismo". Escuto isso e acho até graça na formação da frase, porque eu não fiz o machismo, ele tava bem ali, eu só não deixei passar. Ah, sim, essa é uma escolha minha. Outra aspecto que vejo nesta observação é que na verdade eu não "faço" nada sobre o machismo, e sim sobre o feminismo. Que não é o oposto (mais uma vez: feminismo não é o posto do machismo. Feminismo é um movimento pela igualdade de direitos e respeito. Machismo é uma conduta e pensamento social que dá desvaloriza a mulher em relação ao homem.). O feminismo não ignora o machismo, lhe encara de frente e luta para sua extinção. Então, vou adorar ouvir: "a Luana sempre enxerga a força do feminismo". Tá... ok, é bem romântico. Eu enxergo o machismo. E muitas vezes (e talvez não o suficiente) enxergo em mim também. A mudança é bruta. Por isso escolho não ignorar.

Quando uma pessoa posta uma "piada" ridicularizando as mulheres, eu falo que não gostei. Não brigo (necessariamente), mas não deixo mais passar, fingir que não vi, que essas pessoas são assim mesmo então nem adianta... Tenho tolerância com a pessoa e não com a coisa. Eu já me entendi neste lugar, pelo menos agora na minha vida. E vou re-agir, no sutil, no direto, no indireto, é da minha atual natureza responder ao que vejo/sinto/escuto.

Bebe um gole de água.

Mas de tudo isso, eu gostaria de pensar agora especificamente em relação às/aos demais improvisadoras/es. Quando "a Luana [ou qualquer outra pessoa, homem e mulher] faz alguma coisa sobre o machismo", você também não vê? Digo, talvez não tenha percebido no momento, mas quando é evidenciado pela pessoa, você não vê? Se não... bom, tem uma pessoa propondo algo, talvez pudesse se esforçar para ver/ouvir/sentir a proposta. Se sim... Qual é o incômodo? Realmente, qual é? É o "toda vez"? É um cansaço de falar no assunto? Se for isso, o que tenho a dizer é que é cansativo mesmo e que está em todos os comportamentos, então é sempre e toda vez mesmo. E talvez aquela pessoa não precisasse fazer isso "toda vez", se ela não fosse a única a fazer. Sabe? Cansa estar sozinha. Cansa repetir e não ecoar. Cansa ouvir: "mas são assim mesmo"... Cansa perceber que todo mundo percebeu o que foi dito/feito/sentido, porque na hora que isso acontece todos olham para você para ver a sua reação. Por que te olhariam? Porque ouviram, viram e sentiram. E o que escolhem fazer? Essa é a pergunta do perigo aqui: O que você escolhe fazer? Vai ignorar? Vai jogar a bola para aquela pessoa de sempre e dar um peso para o "toda vez"? Vai dizer ou fazer alguma coisa? Vai dividir o peso? 

E agora que você é um/a improvisador/a, como você pode ignorar isso? "Grandes poderes trazem gradnes responsabilidades" (Tio Ben - Homem Aranha). Mais uma vez, não é um intento à briga (às vezes é, as intensidades tem a ver com as situações, não é mesmo?). Eu mesma, intensa na minha fala como sou para tudo, nem brigo ou grito. Sim, eu reajo, e é grande, na intensidade do afeto. Salvemos as proporções das intensidades, os contextos, e até mesmo o cansaço da repetição para ambos os lados (e aqui não é entre mulheres e homens, mas sim em quem fala e escuta). Estamos todas/os cansadas/os e cheias/os de uma discussão que se finge discutir. Uma realidade que dura milênios, queremos que se resolva em cinco minutos. Vai ser todo dia, grão por grão, gota a gota. Toda vez, todo dia, toda ação. Dá medo e tudo parece a gota d'água. (Bebe água) Eu sei que medo é esse?  E em ti: o que te incomoda? Mesmo, olha para o medo e o incômodo sem uma resposta preparada. "Não esteja preparada/o" (Keith Johnstone). Você sabe que incomôdo é esse seu?

Parece que fui longe, mas eu estou mais perto que nunca. Numa lente de aumento.  uma evidência, dessas que a gente escuta/vê/sente e não deixa passar. É a mesma coisa que qualquer professora/a de Impro lhe diria sobre qualquer proposta de cena: algo está acontecendo diante de ti: o que vai fazer à respeito? Vai bloquear o que aconteceu? Ou vai aceitar e...? 

É que o aceitar implica em dar continuidade, em tomar um partido e ser política/o. A bola fica contigo, aceitar que aconteceu e construir algo dali, somar, acrescentar um tijolo a essa casa. 

No palco, na conversa do bar, no seu dia a dia: O que será o seu "e..."?


***

Algumas perguntinhas feministas em relação a Impro para se pensar (não tenho resposta, vou adorar conversar):

1) Quando sugerem uma profissão ou uma personagem, quantas vezes se escolhe interpreta-la como mulher? Exemplo: bombeiro, pedreiro, senador, jókei, etc. (provocação extra: percebem como a linguística nos leva a pensar no masculino?)
2) Quando homens interpretam mulheres e quando mulheres interpretam homens: 
- E a definição do gênero acontece no meio da cena: você muda a sua forma de falar e se movimentar? Como? Por que?
- Você se apóia num esteriótipo? Qual?
- Quantas vezes você repete o mesmo esteriótipo "homem" e "mulher" no mesmo ensaio?
3) Já discutiu condutas sobre assédio (em cena e fora dela) no seu grupo?
4) Existem ou já percebeu se existem protocolos de conduta e vestimenta para mulheres que seja diferente para homens? (to falando dos ensaios e apresentações, mas serve reparara se os da vida cotidiana se aplicam cá também). 
- Por que existem? Ex.: Qual é o problema, se é um problema, uma mulher não usar sutiã numa apresentação? E num ensaio? 
- Se isso lhe aprece óbvio, já se perguntou se óbvio para s/os demais? 
- As mulheres: elas se sentem a vontade para não usar sutiã se não quiserem?
5) Quantos grupos você conhecem que tem a proporção de 50/50% entre homens e mulheres? E quantos tem mais homens que mulheres? E quantos tem mais mulheres do que homens?
6) Quantos grupos você conhece só de mulheres? E quantos só de homens?
- Por que "existe" (se é que existe)  uma necessidade de haver grupos só de mulheres?


Um beijo, me liga, me escreve! Conversemos tomando uma cerveja, vinho, suco, água e chá. Ah, gente, bebe água! É vital!




Bilbiografia mencionada:

2005. Brook, P. A Porta Aberta. Rio de janeiro: Civilização Brasileira.